Em certo momento de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, a personagem-título, ansiosa com o atraso de uma pessoa, começa a imaginar os motivos que poderiam ter provocado a demora e só consegue pensar em duas razões: a primeira é incrivelmente simples, mas a segunda é tão criativa que se torna inacreditável. E esta característica, a imaginação exacerbada, é justamente a marca registrada de todo o roteiro, que possui idéias suficientes para mais dez filmes. Escrita por Guillaume Laurant, a história gira em torno de Amélie Poulain (Tautou), uma jovem solitária que, certo dia, encontra em seu apartamento uma caixinha contendo diversos brinquedos que foi escondida por um garoto que morou ali há várias décadas. Sem ter muitos propósitos na vida, a moça resolve devolver o objeto para seu dono e, sentindo-se recompensada pela reação deste, decide solucionar os problemas de todas as pessoas com quem convive. No entanto, suas estratégias jamais se aproximam do óbvio e, com isso, ela bola planos complicadíssimos que muitas vezes (mas não sempre) funcionam melhor do que uma conversa franca (a maneira que ela encontra para estimular o pai a viajar é uma das melhores coisas do filme). O que Amélie parece compreender muito bem é que, de modo geral, são os pequenos detalhes que determinam o grau de satisfação com que levamos nossas vidas: prazeres rotineiros ou contratempos triviais quase sempre definem aquilo que costumamos julgar como sendo um 'bom' ou um 'mau' dia. Da mesma forma, são nossas preferências mais sutis que, de um jeito ou de outro, acabam servindo como indícios de nosso caráter – e o filme acerta em cheio ao apresentar alguns de seus personagens através daquilo que eles gostam ou não: uma vizinha de Amélie gosta de ouvir o barulho da tigela de leite batendo no azulejo do chão de sua cozinha; e a heroína adora ver a expressão das pessoas em uma sala de cinema. São observações como estas que demonstram algo que fica claro ao longo da projeção: os realizadores de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain apreciam verdadeiramente as particularidades da natureza humana e, portanto, analisam com sensibilidade os efeitos que certos acontecimentos (como a morte ou o término de um relacionamento) exercem sobre as pessoas. Além disso, o filme consegue conferir beleza aos atos mais simples, como no momento em que um personagem cata alguns grãos de açúcar que se encontram sobre a mesa. Porém, ao contrário do que muitos poderiam imaginar a partir das constatações acima, Amélie jamais se torna um filme maçante. Ao contrário: caso tivesse sido produzido por Hollywood, vários críticos não hesitariam em classificá-lo como uma produção 'comercial', já que funciona também como um passatempo descompromissado, repleto de tiradas divertidíssimas. Boa parte da responsabilidade por este sucesso cabe, é claro, ao roteiro de Laurant, mas isso não quer dizer que o excepcional trabalho do cineasta Jean-Pierre Jeunet deve ser relegado a um segundo plano: associados à belíssima fotografia de Bruno Delbonnel, os enquadramentos e movimentos de câmera criados pelo diretor conferem grande fluidez e dinamismo ao filme, tornando a experiência ainda mais alucinante (e quando digo 'alucinante', estou sendo quase literal, já que as reflexões dos personagens vistos no filme acontecem, em alguns casos, como incríveis delírios visuais). Como se não bastasse, Jeunet faz uma sutil referência ao maravilhoso Delicatessen, que co-dirigiu ao lado de Marc Caro em 1991, ao mostrar a interferência de um 'encontro sexual' sobre os objetos espalhados na lanchonete em que a protagonista trabalha. Enquanto isso, Audrey Tautou cria uma Amélie absolutamente adorável, que está sempre vendo o mundo com olhos arregalados de admiração... e preocupação. Amélie não é apenas uma jovem sonhadora e sensível – ela também é uma moça solitária que, é importante dizer, encontra em suas missões uma forma de preencher o vazio de sua própria existência, o que a transforma em uma personagem ainda mais interessante (aliás, durante os créditos iniciais podemos ver algumas de suas brincadeiras durante a infância, o que aumenta ainda mais nossa proximidade com a moça). Assim, à medida em que a história se desenvolve, Amélie se torna cada vez mais 'real' – e passamos a compreender melhor sua filosofia de vida ('Quando o dedo aponta para o céu, o imbecil olha para o dedo', alguém diz em certo momento do filme, seguindo instruções da garota). Ao contrário daquilo que acontecia em Delicatessen, desta vez Jean-Pierre Jeunet não constrói um universo surrealista para ambientar sua história: a Paris vista em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é fantasiosa, mas não fantástica. E é desta forma que o diretor consegue extrair o mágico do cotidiano e escrever poesia a partir do banal. Mas seria Amélie anjo? A espécie de tortura psicológica a que ela submete uma personagem é moralmente correta? Não, na verdade não é. Se o seu objetivo fosse fazer felizes todas as pessoas do mundo, tentaria não só fazer ver ao merceeiro abusador que o seu comportamento está errado, como também incentivaria o seu assistente abusado, a “defender-se” pelos seus próprios meios. Temos aqui, pois, um conjunto de atos mais motivados por uma certa vingança e satisfação pessoal com os resultados, do que propriamente com “fazer o bem”. Quanto a mim, não faz sentido partir de um pressuposto errado (que a moça é um anjinho e que só faz o bem), para depois criticar o argumento dizendo que afinal não faz tão bem assim. Ela é apenas humana, e estamos a falar apenas de um filme, não de um tratado moral. Mesmo incapaz de “mudar o mundo” do espectador, Amélie não decepciona aqueles que a procurarem sem exigirem que se conforme com a sua idéia particular do que arte cinematográfica deve ser (mais Nouvelle Vague, talvez), seja em termos de “densidade” narrativa, seja em termos de tratamento visual. Quem considere que qualquer movimento ou ângulo de câmara pouco convencional ou qualquer imagem “artificial” e irreal se reconduz a um “estilo MTV”, não terá a capacidade para se deixar seduzir. O filme é belo, simples e emocionante, em particular para quem o for ver enquanto filme (em abstrato) e não enquanto “arte e ensaio” (por mero acaso sob a forma de filme), com base em conceitos cada vez mais diluídos. Indico e cada vez que posso alugo de novo. Simplismente fantástico!
24 de junho de 2008
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